domingo, 28 de novembro de 2010

Sou eu




Sou eu, eu mesmo, tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobressalente próprio,

Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.
Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.


E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconseqüente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado, a mim, num banco de carro elétrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ir sentar em cima.


E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.


Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas,
De haver substituído qualquer coisa a mim algures na vida.


Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo —
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa-vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas mortas de custar a engolir.


Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas da cabeça
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.

Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.

Sou eu mesmo, que remédio! ...




Álvaro de Campos, in "Poemas" Heterónimo de Fernando Pessoa



P.S: Foto publicada no site http://olhares.aeiou.pt/ da autoria de Taya

sexta-feira, 19 de novembro de 2010

O contrapasso





Algures perdidas em textos, fotografias e pessoas não vejo maneiro de as encontrar, faltam-lhe as respectivas saliências… As concordâncias que fazem com que o verbo ser seja resultado directo do verbo estar… Elas andam por aí em telas nunca antes vistas e em pensamentos nunca imagináveis… Estão algures dentro de pessoas que eu não encontro, em pronúncias protegidas… Em miocárdios muito pouco explorados… Elas andam no privado.Deixaram-se de exposições desnecessárias porque quando delas se fala não há exposição que lhes valha… São modos, feitios, antagonismos, contradições ao vulgarmente actual… Deixaram-se dos apanágios e das estrondosas celebrações da sua existência… Já pouco se usam, raramente se vêm e pouco ou nada se sentem… De modo que a sua localização exige-se… É urgente encontrá-las e praticá-las como se delas dependesse toda uma existência… Deixemo-nos do amanhã serei ou do tenho sido, deixemo-nos de interiorizações ocas e desprovidas de conteúdo… Deixemo-nos de ser pessoas em p minúsculo e passemos a ser pessoas grandes com G maiúsculo… Passam-se minutos, horas, dias e meses em que as minúsculas evidenciam pessoas em tamanho microscópico com pensamentos à escala milimétrica… Perderam com elas os valores e passaram estes a ser pequeníssimas ideologias deprimentes… Esconderam-se os tesourinhos nos cofres da mente e resguardaram-se os mesmos das intempéries…Recearam confrontações desnecessárias e imposições utópicas nos ensaios do que é ser em SER maiúsculo… Fiquemo-nos pelos textos em minúsculas e pela ausência de pontuação… Passemos das letras às pessoas e deixemo-nos de divagações… Deixemos os sentimentos minúsculos e os interesses pessoais para quem de direito os valoriza e dirijamos por momentos as nossas atenções aos desaparecidos… Àqueles que de grande têm tudo e do tudo que têm evitam exibicionismos… Viver em arte é saber transpor histórias pequenas em conteúdos enormes, em pessoas com PERSONALIDADE e ALMA transformar valores em matérias de estudo teórico e prático… Deixemos os ensaios para ontem e os desejos para anteontem… Na verdadeira gestão do tempo ser está para o presente como o oxigénio está para a existência… É de maiúsculas que se precisa e de pessoas que nelas coloquem em prática todas as conjugações do verbo SER nos respectivos tempos.









"Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro."

Vergílio Ferreira, in "Escrever



P.s. Foto pubicada no site http://www.olhares.aeiou.pt/ da autoria de Hugo Tinoco